''Preconceito é coisa de gente imbecil' diz engenheiro que se veste de mulher em MT
O engenheiro eletricista Enrique Camilot, de Cuiabá, que na última semana expôs na mídia ser também Mariza, diz ter paciência para explicar sua condição humana a quem quiser entender e que "o deboche ainda que na forma de comentários é coisa de
O engenheiro eletricista Enrique Camilot, de Cuiabá, que na última semana expôs na mídia ser também Mariza, diz ter paciência para explicar sua condição humana a quem quiser entender e que "o deboche ainda que na forma de comentários é coisa de gente imbecil".
Aos 36 anos, casado pela terceira vez, pai de um filho de 8 anos fruto do segundo casamento, afirma que nunca se interessou por outros homens, embora se sinta à vontade se vestindo como mulher.
Desde 2014, passa por um processo de auto-conhecimento, que culmina agora com a revelação pública.
Este é um assunto novo e as pessoas não têm muita informação sobre isso, certo?
O pessoal tem uma visão muito superficial do assunto, atrelam gênero a sexualidade, afetividade misturam com sexualidade, reduzem tudo ao corpo, boa parte das amigas da minha esposa perguntaram se eu eu ia fazer operação, perguntaram como ela aceita isso, como que fica isso. Se você for desmembrar não muda muita coisa, quando se tem amor.
Você é cuiabano
Não, sou de São Paulo e vim para cá quando tinha 5 anos com a família.
Desde quando você se compreendeu desta forma?
Eu terminei de fechar a conta toda este ano. Na verdade, foi um processo que começou em 2014. Desde perceber que algo está errado, perceber o que está errado. Sempre soube que eu era diferente, mas não sabia qual a extensão disso.
Você se identifica como?
Olha ai, tá vendo...
Mas precisa explicar isso...
A mente humana, a alma - não sei como você quer definir, no metafísico ou no científico, tanto faz - é muito mais complexa, muito mais bonita que o binário isso ou aquilo. A sociedade me considera transgênero. Alma feminina corpo masculino. Então há uma leve incompatibilidade entre hardware e software. O hardware é o corpo o software é a alma. Então é menina ou menino. Os dois. Meu corpo é masculino. No DNA, o cromossomo xy vão estar lá. Homem nasce homem e morre homem. E até depois, continua homem, porque, nesta definição de corpo, se acharem minha ossada daqui a não sei quantos anos e tirar o DNA, vão dizer: um ser masculino. Eu estou alterando um pouco meu corpo para ele ficar mais curvilíneo, com formato de gente com a minha alma, mas não quer dizer que vai deixar de ser masculino. E eu gosto um pouco disso, tem certas funcionalidades que são boas no corpo masculino. Mais robusto, menos delicado, etc e tal. Também não me cabe gostar ou não. A natureza que dá as cartas. Você joga mas não queira alterar as cartas porque foi a natureza que te deu. A natureza, Deus, para qualquer lado que você for, me presenteou com uma mente até razoável, corpo masculino e uma alma feminina.
O que aconteceu em 2014?
Seria uma auto-descoberta. Quis tentar entender o que eu sou.
Antes disso era conflito na sua cabeça?
Muito. Até no casamento, na vida profissional e tudo mais. Sempre foi complicado.
Você se casou quando?
Tenho seis anos de casada já.
Seu filho tem quantos anos?
Ele tem 8 anos, mas é do casamento anterior. Fui casada com a mãe dele por um tempo. Três anos. O Luciano é fruto desta relação.
Na adolescência e antes de se casar com uma mulher você namorava homens?
Homens nunca me interessaram nesta parte sexual. Na verdade, por conta do gênero, esta parte sexual na minha cabeça, ela é meio diferente, nunca foi muito padrão. A sociedade impõe o padrão: homem tem que catar mulher, entendeu? Como você não perdeu a virgindade, cobranças assim. É reduzir muito uma coisa tão bonita como a mente, reduzida a corpo, a bicho.
Você fez faculdade?
Fiz. Engenharia elétrica e antes escola técnica. Técnico em eletrônica.
Você pesquisou se tem muita gente que, como você, não se enquadra no pacote homem-mulher?
Estudar minha cabeça me trouxe uma série de informações. Comecei a usar a matemática e as ciências da computação para estudar a mente humana, já que só estudei um pouco de psicologia, mas vi que era muito superficial. Se tem uma coisa que a gente aprende na engenharia é estudar o todo. Não só por fora. Equipamento, quando você o olha por fora, tem um conceito, mas quando abre por dentro, tem outro, muito maior, sabendo como funciona, trabalha, se comporta. A mente da gente, quanto a esta modelagem, não é muito diferente de um computador, o que a gente é? Tanto faz a parte espiritual, metafísica ou física ou ateísmo. O que a bíblia fala: o corpo é a morada da alma e que a alma que importa e vai ser salva e tudo mais. A biologia fala que nós somos reprodutores de genes e adquirimos consciência. Um chama de alma e outros de consciência. Mas para efeito de estudo, o que é? Um computador rodando um software. A gente tem um computador, nosso cérebro, muito potente por sinal. Com software rodando lá dentro, que você pode chamar de alma ou ser autônomo, consciência, o que você quiser.
Se você não tinha esse conflito sexual, o conflito era o desejo de usar roupas femininas?
Também. Mas você se olha no espelho e vê que está errado. Não se comporta como o homem padrão. Se bem que esse negócio de padrão é meio complicado, mas não é uma variável binária, não é uma escolha ou você está aqui ou está aqui. O gênero em si só tem dois, mas podem estar um para um lado e para outro, como é meu caso.
Já chegou a ir ao médico?
Estive indo a uma psicóloga por alguns meses, mas depois vi que as minha modelagem funcionava com a minha cabeça então eu consigo ser mais ou menos a psicóloga de mim mesma.
Como você lida com isso em seus casamentos?
Antes de falar em casamento, é preciso dizer que a falta de respeito mutuo condena qualquer relação.
Mas você se vestia como homem?
Somente como homem. Mas usava roupa feminina escondida mesmo. Todas as minhas esposas sempre souberam disso. A primeira não entendeu direito e o casamento desabou. Mas assim: a questão da convivência é muito mais importante, é que vai determinar se a relação é boa. Na verdade, tendo amor, você corrige problemas de convivência e se dá bem. Não tendo, fica conturbado. Meu primeiro casamento foi meio conturbado e eu também não me entendia direito. A única coisa que não perdoo da primeira esposa foi que ela brincou com este assunto.
Sua condição gerou sofrimento para você na vida?
Gerou decepção. Não sofri na hora, mas fiquei decepcionado por ela ter usado isso. Até que nível que se chegou?
Desde quando você se coloca no feminino, tipo: fiquei decepcionada?
Tem alguns meses só e ainda é bem novo para mim, tem hora que alterna e volta o masculino.
Mas isso é uma verdade dentro de você? (o feminino)
Sim, minha alma é feminina. Mas sempre vou ter partes masculinas. Estou em um processo de desconstrução de toda o processo que fiz para esconder e de ser aceita pela sociedade. Eu chamo carinhosamente de enrique.exe, porque é um software criado para tentar me esconder. Alterei meus movimentos, meu jeito de falar, meu comportamento.
Primeiramente você se abriu com suas esposas?
Não foi bem aberto, foi só a questão das roupas femininas. Com amigos nunca fui de me abrir, tema muito fechado para mim. A mãe do meu filho conseguia me ver por dentro e aceitava muito bem, não tenho o que reclamar desta parte, o resto da convivência é que complicou o casamento. Meu filho também. Expliquei para ele, após três semanas destrinchando a relação pais e filhos. A relação pais e filhos não tem tanta influência entre ser mãe e ser pai porque é de afeto, protetor e protegido para que o mundo não espanque ele tanto, para que não se machuque e além disso mestre de ensino, como viver na sociedade, uma profissão, você passa valores e o que você tem como filosofia. Então o que tento passar para meu filho, ter ética e ser feliz. É isso que quero para ele. Eu tenho o máximo de paciência para explicar para ele de uma forma que ele entenda. Ele mora um tempo com a mãe e outra comigo. E preparo ele, para quando alguém vier fazendo piadinha, não ligar para gente imbecil.
Você se ofende com as coisas?
Não. Vivi com muito conflito, muita briga na família. Aprendi a lidar com isso. Não foi fácil para minha mãe, não foi fácil para mim. Meu pai mudou um pouco, foi pesquisar sobre o assunto. A adolescência foi um período complicado para mim e para eles enquanto pais. Eles sentiram isso em casa. Fui pega com roupas femininas na adolescência, o que gerou transtornos. Eles não estavam preparados para o que sou e nem eu estava preparado para explicar isso. A gente tem que estudar. Se não sei alguma coisa, vou estudar sobre ela. Desde pequena sou assim.
E no trabalho?
Mexo com automação industrial.
É um universo muito masculino?
Sim.
Como você está sendo tratado após se vestir de mulher?
Vou lá e faço meu serviço. Se acharem ruim, que chamem outro. Fazem olhares, a maioria não fala nada. Mas as coisas já mudaram bastante, antes a lei me dava porrada, hoje a lei me protege.
E o preconceito?
Está até em um elogio. Tem quem pergunte ao meu pai, como você deixa ele sair assim? Meu pai responde que sou uma pessoa livre, decide o que quer da vida e está trabalhando, tá de boa, qual é o problema? Eu não ligo. Minha função é tentar esclarecer. Você tem tempo para entender?
Fonte: Gazeta Digital
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